quinta-feira, 18 de março de 2010

simplesmente Blue

.
Ela só queria ter um coração azul. De nenhuma outra cor mais a interessava. Verdes, alaranjados, violetas, cinzas, nenhuma dessas cores era desejada agora. Talvez porque já tivesse tentado em outras expectativas desejos de um coração em qualquer uma dessas cores já mencionadas. Ou talvez então por que já tivesse esperado tempos demais até se decidir de vez pelo azul. Anil, Marinho, Royal. Fosse qualquer um desses tipos presentes e classificados dentre os inúmeros tons de azuis, mas fosse um coração azul.
Nesse dia, dia em que se decidiu por um coração azul, acordou cedo, ficou minutos se enrolando no lençol, abraçada ao travesseiro. Talvez numa maneira delicada de adiar nem que por segundos, minutos a fio, aquela decisão. Não era fácil para ela acordar assim dentro de uma quinta-feira suja. Não era mesmo fácil, logo ela uma mulher dita bem resolvida se rebelar assim por uma questão de cor. Mas afinal, seria mesmo tudo isso simplesmente por uma questão de cor? Pensava. Tudo é uma questão de cor. Mas estava mesmo decidida e enfrentaria não importa quem tivesse de ser. Ela teria um coração azul.
Nesse mesmo dia depois de adiar o se levantar acordada por uns minutos se preocupou-se em pisar com o pé direito ao sair da cama. Nunca foi uma dessas mulheres supersticiosas, tão pouco acreditava em Deus, ou qualquer que seja o ser supremo que existisse acima dela mesma. Procura apenas sentir as energias, mas não custava nada se preocupar um dia só com o primeiro pisar do dia. Primeiro pisar que seria esse o único possível de ser planejado. Tomou um banho bem quente, escolheu o vestido mais colorido, penteou solto os cabelos lisos e saiu. Meio sem destino, meio sem saber ao certo como chegar lá, como seguir em frente agora.
Andou pelas ruas sem destino, disputando espaço com os ponteiros do relógio que corriam horas a dentro até chegar sempre no mesmo lugar de antes. Enumerou nos dedos todas as possibilidades de onde, com quem, e como explicar essa vontade insuportável de se ter um coração azul. Eram onze horas e quinze minutos, observou atenta. E não podia mais passar dali. Caminhou até a loja de quadros, entrou, sentiu a sensação das molduras e escolheu a mais dourada, de um tamanho moderadamente grande, com traços medievais de escultura. Foi para casa, pendurou-a com pregos na parece da sala. As paredes talvez inconscientemente eram azuis, um azul tão claro e delicado que era como se ali fosse a sala de espera do paraíso.
Agora só lhe faltava mesmo um coração azul para emoldurar. Mas por um segundo ela caiu em si. Não existe lugares em que se faz possível comprar corações azuis. Ainda mais nos dias de hoje, em que todo mundo não dá a mínima pra corações azuis. Talvez fosse possível pintar o seu próprio coração, mas ele já não estava tão forte assim para passar por um reforma. Todas as dores, e as tempestades, e os amores não resolvidos, acumulados, seu coração era daqueles que já não bate nem apanha mais.
Era infeliz agora. Não via a possibilidade de ser mais feliz sem um coração azul. Como num ritual, como numa forma de se culpar por não conseguir, todos os dias ela ao acordar se sentava no sofá da sala bem em frente a moldura dourada. Observava. E era como se uma fizesse companhia a outra, ambas varias por dentro, à espera de um coração azul. À espera de alguma coisa que as preenchesse por inteiro. À espera de encontrar a si mesmas.


.
maycoll C.

terça-feira, 16 de março de 2010

barbeÀdor

.
É difícil ficar adulto. Ele pensou olhando fixamente dentro dos seus próprios olhos refletidos no espelho do banheiro. E doloroso também, embora seja necessário ficar adulto. Continuou pensando. A barba por fazer fazia do colorido preto dos pelos um ar meio despreocupado de si mesmo. Ele nunca acreditou muito na sua própria beleza. A beleza sempre vem de uma vez. Refletiu. Era preciso encarar tudo com a consciência e o entendimento de quem há tempos não é mais criança, nem tão pouco a pouco tempo um pré ou adolescente maduro.
Os olhos continuavam os mesmos. Miúdos, mas gigantes na profundidade em que se faziam o lançar de olhares. A boca larga também era a mesma de sempre. Os dentes não, esses tiveram de ser forçadamente modificados e clareados e corrigidos pra se encaixarem em um modelo de sorriso mais confortável. Agora eram ainda grandes e brancos e faziam um contraste gigantesco, pelo menos agora, ali diante do espelho, naquele encontro entre ele e ele mesmo.
O grande medo dele talvez fosse o de se perder em si mesmo. Cair em um buraco negro, aberto dentro de si mesmo, dentro daquilo que ele mesmo não sabia definir, fora de tudo que ele já havia sentido ou vivido ou imaginado para si. Cair em si mesmo. Porque a gente nunca sabe até quando tudo vai durar. Ele se encarava concentrado em entender. Até quando dura a infância? Respostas, respostas. Ele se perdia entre tantas perguntas jogadas pela pia do banheiro abaixo. Os canos se entupiriam sem respostas certas, esgotados de si mesmo, cheios de uma vida indefinida por imagens modificadas. Olhar-se no espelho nunca tinha sido tão doloroso.
Um. Dois. Três. Quatro. Quatro milhões de dúvidas, quatro vezes se fosse necessário.Respirou fundo. Apertou firme a gilete com uma das mãos, o pulso firme, quase dolorido de se sentir em pulsação. É hora de abrir a janela de dentro, deixar entrar novos ventos, tirar a poeira que com o tempo se deixou acumular pelos cantos. Sorriu, mesmo tendo medo, sorriu largo, sorriu limpo. Ensaboou o rosto com a mão que estava livre. Sentindo o sabão fazer espuma, os pelôs crescidos ali, entre queixo, pescoço e maçã do rosto. Sentindo a si mesmo, em um ritual que ele sabia que a partir de agora se repetiria quase que diariamente. Se olhou firme, fixo, decidido de si. Leve e doce. Se barbeou.



Maycoll c.
_