terça-feira, 24 de novembro de 2009

Na terra do coração passei o dia pensando...

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- coração meu, meu coração. Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa. Ficou só com-cor, ação - repetido, invertido - ação, cor - sem sentido - couro, ação e não. Quis vê-lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei. E como quem gira um caleidoscópio, vi:

Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.

Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.

Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Vega. Levam junto quem me ama, me levam junto também.

Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.

Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças nas janelas, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se põe. A lua cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.

Meu coração é um filme noir projetado num cinema de quinta categoria. A platéia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.

Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos - Aí de mim! Ai, ai de mim!

Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam por destruir tudo.

Meu coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável.

Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.

Meu coração é um anjo de pedra de asa quebrada.Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.

Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar será feliz para sempre.

Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas. Lareira acesa, poltronas fundas, macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath: "Im too pure for you or anyone". Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.

Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega. Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.

Meu coração é uma planta carnívora morta de fome. Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso.

(Caio Fernando Abreu)
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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

apenas uma carta a mais

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então eu posso fechar os olhos e me lembrar de tudo, como se o nosso último, até então e talvez para sempre único encontro, tivesse sido ontem, ou a horas, segundos atrás. A clareza com que me recordo do seu largo sorriso, do branco pálido da sua pele, das suas pupilas brilhantes me cegando intensamente. Também me lembro do seu cheiro, do seu toque. Das palavras em francês que cruzavam safadas e provocantes o caminho entre língua e dentes, até caírem sobre mim, pesada sensação de delírio. Às vezes me bate uma certa saudade, aí me lembro que uma vez você me disse que certas coisas tinham de ser esquecidas, e tudo passa. Mas me lembro, das conversas bobas, os amigos, as lágrimas... Eu chorei feito criança perto de você, uma, duas, três vezes talvez. Acho que jamais chorei tão pura e delicadamente por alguém. Tenho tantas lembranças boas ao seu lado. E pelo que conheço você pode pensar, mas esse blá blá blá todo só pra desejar feliz aniversário... Talvez, como disse você: eu sou utopicamente colorido demais. Eu quero chegar ao ponto máximo, mesmo sabendo que 2mC não é mais a “tal fórmula secreta do amor”, por isso talvez preciso dar voltas. Eu te odiei tanto, quanta raiva me subia quando gente discutia por coisas banais. Hoje eu penso que aquela era talvez a nossa maneira doce de se fazer presente, mesmo distantes.
Aprendi tanta coisa bacana com você, e sei também que você aprendeu algumas comigo. Eu aprendia gostar de Panic!, você ouviu Ivete, leu Caio F. Agora você será o cara que vai escrever o prefacio do meu primeiro livro. Isso pra mim não tem preço, é tão maior que tudo. E é disso que me lembro sempre, as coisas boas que ficaram. O sentimento de respeito (as diferenças?), o carinho, a certa atenção, a amizade. É engraçada a maneira como dividimos nossos problemas e confusões amorosas atuais e nos criticamos quase sempre humoradamente e sinceramente. Crescemos juntos, em pouco tempo, mas em gigantesca intensidade.
Sempre ouço aquela canção que você cantou pra mim e que diz: If I give up on you I give up on me. E penso que seja bem isso, não lembrar de você é não aceitar tudo que cresci ao seu lado e ainda tenho crescido. (a desculpa se você ta achando tudo isso um saco, vou ser prático daqui pro final).
A moral da história é que eu te admiro muito pelo menino que você ainda é, pelo homem que tem se formado, pelo amigo, pelo escritor, pelo publicitário... E por tudo aquilo que você se faz diariamente. E se eu posso desejar algo me especial, além de todas as coisas boas que desejo diariamente pra você, é amor. Pra você continuar sempre seguindo seus certos caminhos e conseguindo todo o resto, paz, amigos, sorrisos, viagens, grana...
Ai eu percebo que eu posso abrir os olhos, e tudo foi verdade e ainda é. Assim como você sabe que pode contar comigo quando precisar. Porque mesmo distante eu sempre estive e estarei perto!

os meus melhores e mais coloridos beijos

Maycol C.
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